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setembro 05, 2017

Tempo

O anseio do mistério sem nome
Ter o eterno e sentir sua ausência
Lança-nos ao dissabor da falência
Paradoxo brutal que a fé consome
O que nos prende a tal absurda fome?
A distorção da natural essência do tempo vítima
Sem existência, serve ao desejo sem ter quem o dome
Mas a graça única do cordeiro que a altivez humana
Ao pó reduz, uniu-nos com tempo verdadeiro
Pois antes mesmo da formação da luz
À salvar do destino derradeiro
Fez-se o brado: Haja cruz! E houve cruz.

Felipe Valente

setembro 02, 2017

Partida

Vou embora.
Dói porque eu sinto com toda a minha alma. Eu não desprezo nenhuma parte dela. Mas vivo em um microambiente em que qualquer valorização da alma é pecado.
Há resistência de todos os lados ao pensamento. Há que se sufocar a razão a qualquer custo, a fim de se evitar os conflitos. Absolutamente toda discussão é mal vista. A humanidade do homem torna-se objeto de repúdio e a existência inteira é só passagem esvaziada de significado.
Sei, ainda, que a palavra falada exige o domínio das pulsões. Que mesmo a razão está sujeita à doçura. Não há crescimento sem confronto, como também não há sem o amor. A maturidade combina o pensamento livre à serenidade. E eu não sou serena.
Eu sou inquieta. Indignada. Indomável. Eu sei do desespero da minha alma sufocada e isso é tudo o que eu sei. Eu explodo em lágrimas e em revoltas, e não acrescento ao crescimento de quem está perto de mim. E eu lamento muitíssimo.
Um dia eu vou alcançar o equilíbrio de mim mesma. Não por mim. É porque eu sei que a Palavra é capaz de me desfazer e reconstruir, e eu não vou me apartar dela. Neste dia, eu juro, eu voltarei. Não pense que eu vou julgando saber demais. Pelo contrário. Eu preciso aprender tudo, ainda.
Mas eu espero encontrar um lugar - a uma distância segura - que acolha as minhas contradições. Um lugar que apascenta a angústia de um coração limitado em que foi colocado o infinito. Um lugar aberto aos vôos do pensamento, do logos e da imaginação: isto é, um lugar em que a expressão da alma não é desprezada por ser vaidade, porque, afinal, tudo é.
Tudo é vaidade.

agosto 09, 2017

Montes

"A minha flor é efêmera", pensou o principezinho, "e só tem quatro espinhos para se defender do mundo inteiro. E eu deixei-a lá sozinha!"

Resolvi voltar a escrever. Escrever mesmo o que der na telha. Porque um dia eu ainda vou compilar tudo isso aqui e, de algum modo, as coisas farão sentido. Têm que fazer.
Lamento não ter um conteúdo diferenciado dos últimos anos. A melancolia continua a me inspirar as palavras que, não sendo as melhores dos dicionários, são ainda as melhores que eu tenho. Se eu fosse feliz, não escreveria.
Desta vez, especificamente, a consciência do tempo e o amargor que a acompanha são meus conflitos. Perdi a doçura em minha última crise existencial. E como se deu? Foi numa trágica quebra de aliança há dois ou três verões, quando uma faísca de maldade vinda não sei de onde invadiu um relacionamento e me destroçou o coração. A sequência de fatos é bem recorrente: uma palavra torpe aqui, um olhar de desprezo ali, uma ofensa travestida de brincadeira, uma oportunidade e pronto. Golpeia-se um coração amigo, abre-se uma ferida que sangrará até a morte. Em puro instinto de defesa, toda a confiança se esvai e, com ela, a alegria e a leveza da inocência. Não há beleza ou graça em um coração traumatizado. Fosse possível retratá-lo e ver-se-ia um garoto maltrapilho, magrelo, fragilíssimo que exibe ameaçadoramente os dentes para quem quer que ouse se aproximar. É esta a deprimente imagem de um coração que se machucou.
Um desgosto desses afeta o prazer na existência. É que o coração machucado expulsa todo mundo, e a solidão entristece. Adicione-se a isto a efemeridade da vida, da qual se toma consciência quando se cresce, e o transtorno está feito. Tudo parece sombrio. Irreal. Enlouquecedor. Há um único desejo pulsante, o de fugir da realidade. Seja por meio do sono, da arte, da morte ou de outro. Vive-se num silêncio que ensurdece. E a impossibilidade deliberativa de olhar para fora de tais questões é como um cativeiro terrível.
Doloroso. Mas ainda não caí no desespero dos céticos que, certamente, serviria-me de gatilho. Ainda há alguma esperança além dos montes. Continuo me perguntando se é dali que virá o meu socorro.

março 25, 2017

angústia

É sempre frustrante lidar com sentimentos. Parece sobrenatural atribuir-lhes símbolos, sejam estes caracteres, movimentos, melodia ou outra coisa. 
O desejo insaciável por externar luta todo dia contra a impossibilidade real de fazê-lo com perfeição. E mesmo perfeição é nome insuficiente para um anseio grandioso, bem maior que as carnes que o abrigam. 
O dilema, meu caro, é de ordem existencial. Minha paixão é maior que eu, vive em mim, e coexistimos. Alguém afirmou que esta existência frágil, efêmera e contingente, precede a essência tão ampla que a consome. O que se chama por essência? O que se chama por "eu"? Palavra de duas letras, vazia de conteúdo semântico, que exprime tantos paradoxos. Exprime todos eles.
Cito a canção.
Ninguém mais pode dizer as palavras em seus lábios. (...)
Deixe o sol iluminar as palavras que você não pode encontrar enquanto tenta alcançar algo à distancia, mas tão próximo que você pode quase tocar.
Liberte suas inibições.
Sinta a chuva em sua pele. (...)
O restante ainda não foi escrito.
unwritten

dezembro 31, 2016

2016.

Mas se você sabe o que é isso, se já passou a noite toda acordado e chorou até acabarem as lágrimas… Então você sabe... Então você sabe que, no fim, desce sobre nós uma grande calma. Chegamos até a ter a sensação que nada mais nos poderá acontecer. - C.S. Lewis, As Crônicas de Nárnia. 

Deus, que ano.

Estou convencida de que quanto mais se cresce, mais se chora. Ou de que eu estou fazendo o contrário de crescer, o que não é verossímil.
Lamento profundamente que as primeiras lembranças que me ocorrem ao refletir sobre 2016 sejam de perdas. Eu perdi o meu avô em Janeiro. Amizades preciosas também esmaeceram e foi como se apagassem algo dentro de mim.
Para uma delas eu juro que não sei o que fiz. Talvez eu o tenha exaurido com as minhas palavras sempre emocionadas em alguma medida, mas esforcei-me para manter a promessa de ser responsável, e também assumi o risco de chorar um pouquinho quando me deixei cativar. Chorei, no entanto, pela irreciprocidade, pelo silêncio permanente, e não foi pouco. Sinto-me agora como se não tivesse mais que três espinhos para me defender do mundo, e há muito mais que duas ou três larvas para suportar. Pouco importam as borboletas. Estou sozinha. Apesar disto, tenho nutrido a esperança de seu retorno e espero, ainda, que não me venha com um carneiro sem mordaça, a fim de me devorar... Porque metade de mim é partida, mas a outra metade é saudade.
Fui decepcionada de outros modos e por outras pessoas. O desprezo de alguém importante por um sonho - um sonho que era meu, - fez-me definhar. Vi de perto a própria loucura quando ninguém pode compreender o tamanho da minha dor e desejei a morte como nunca antes. Crises de angústia me puseram em dívida até com a função que exerci e amei no lugar que me ofereceu uma das maiores experiências que já tive. Pensei estar doente, e meu corpo manifestou o que eu pensei com vômitos, febres, quedas de pressão, dores agudas e pânico em momentos aleatórios, por diversas vezes. Veio ainda a culpa por não encontrar motivos sólidos para tamanho sofrimento, pelo meu egoísmo, por ter me tornado tão incapaz de enxergar além da minha própria dor. Porque metade de mim é o que penso, e a outra metade é um vulcão.
Eu tentei me reerguer e dançar, me envolvendo em mais um projeto artístico, tentando resgatar meus sonhos frustrados n'Aquela Saudade. Interpretei a Memória de Perdas. Embora tenha sido belo, jurei não querer estar num palco outra vez. Doeu admitir que a metade de mim é a lembrança do que fui, mas a outra metade não sei.
Alegro-me, porém, por poder chegar ao último dia do ano e falar de pequenas vitórias, não nos momentos em que as águas se acalmaram, mas em meio à tempestade. Permaneci firme em meus estudos, mesmo nos dias em que vi os cabelos fracos, caindo aos montes, e quando enfrentei dificuldades indizíveis de concentração. As notas do primeiro semestre refletem meu desespero, e as do segundo refletem que, apesar de tudo, está tudo bem. Permaneci firme em meu trabalho, procurando me entregar de todo coração às crianças que coloriram minhas semanas e me fizeram esquecer, ao menos por seis horas diárias, tudo o que se passava em mim. Tais conquistas (se é que manter dádivas outrora recebidas pode-se chamar de conquistas) não foram, de modo algum, méritos somente meus. Devo a permanência na faculdade à minha família e no trabalho às colegas e superiores que tanto viram e insistiram em mim. Até hoje não compreendo o que viram, mas olhos bons veem coisas lindas, e nisso eu acredito.
Eu acredito que Deus me acrescentou amores, para tornar tudo mais leve. Um grupo de amigas, um garotinho de 4 anos, uma cadelinha que pensa que é gente. Foram como anjos. Em meu coração sou profundamente grata pelos amigos que, ainda que distantes, permaneceram inabaláveis. As poucas palavras que trocamos ao longo do ano me encheram de esperança e de fé para uma vida inteira. Eu nunca vou ter condições de retribuir. Ainda bem que dever amor não é pecado.
Quando finalmente me vi tranquila, quando tudo passou, a calmaria veio. A calmaria, e não a euforia. Não tenho grandes expectativas daqui por diante. Ando devagar porque já tive pressa, e levo esse sorriso porque já chorei demais. Hoje me sinto mais forte, mais feliz, quem sabe? Só levo a certeza de que muito pouco eu sei. Ou nada sei.
Que 2017 seja leve, mas se for para aprender menos do que aprendi esse ano, quero mais é que ele venha com tudo. Feliz ano novo?


Drench yourself in words unspoken, live your life with arms wide open. Today is when your book begins, the rest is still unwritten.